Poesia x mito x religião no verso de "Senhor Cidadão"


A música Senhor Cidadão, de Tom Zé, é uma linda peça de arte. Atualmente em evidência na novela da Rede Globo, Velho Chico, a canção contém uma coleção de reflexões, metáforas e ferramentas filosóficas tão encantadoras quanto brilhantes, cuidadosamente disfarçadas em meio à sua melodia popular.

No entanto, apesar das mensagens carregadas pelas inúmeras potenciais interpretações de seus versos, eu quis escrever este texto para atentar a somente um deles. Na segunda estrofe, Tom Zé vai-nos assim:

Senhor cidadão
Eu e você
Temos coisas até parecidas
Por exemplo, nossos dentes
Da mesma cor, do mesmo barro
Senhor cidadão
Enquanto os meus guardam sorrisos
Senhor cidadão
Os teus não sabem senão morder

Para meus propósitos, deixemos de lado momentaneamente a sutil, porém notória genialidade desta composição. O que eu gostaria de comentar está nos versos 3 e 4:

Por exemplo, nossos dentes
Da mesma cor, do mesmo barro

Preste atenção na escolha das palavras. Ora, todos sabemos que nossos dentes não são feitos de barro, mas principalmente de dentina e esmalte. A conotação tencionada, porém, é óbvia: o compositor se refere à formação do ser humano segundo a Bíblia. Evoca-a como que para dizer que somos todos iguais, temos a mesma origem – ainda, por que somos tão diferentes?

Meu ponto, sim. Logo chegarei a ele. Espero que siga o raciocínio.

Pois bem, eu sou cristão. No entanto, não acredito que tenhamos sido feitos a partir de barro. Digo-o porque sei que existem certas vertentes do Cristianismo que creem literalmente nessa afirmação. Eu, pessoalmente, não acredito. Penso que a linguagem bíblica é, nesse ponto, como muitas vezes, figurativa. Longe do meu intento, porém, levantar aqui uma discussão acerca do tema. Na verdade, muito pelo contrário: apesar de não acreditar nisso, eu vejo beleza nesse verso, nessa expressão, além do que pretendo tentar ilustrar. E é isso que pretendo exaltar.

Tenho como saber se Tom Zé acredita literalmente nisso? Não sei. Talvez sim, talvez não, mas isso é irrelevante. Sendo brasileiro, nordestino e, portanto, tendo vivido numa cultura cristã, tenho motivo suficiente para crer que o compositor fosse, também, cristão. Mas isso quer dizer necessariamente que ele estaria usando sua arte como meio de propagar sua fé?

Creio que não.

Tudo o que Tom Zé fez nesse verso foi usar um bem conhecido elemento do imaginário popular para sintetizar um simbolismo. Que me importa, portanto, se ele acreditava literalmente nisso ou não? Mesmo que eu não fosse cristão, entendendo o que ele quis dizer, e percebendo a profundidade do verso, aonde ele quer chegar, como poderia eu não apreciá-lo? E a poesia, fica onde?

Acontece que, no momento em que distanciamos o mito religioso da obrigação religiosa de crer, acaba se tornando mais fácil de ver a beleza naquelas coisas. O que acontece com a mitologia grega, que fascina milhões e inspira tantos trabalhos de arte? E os grandes épicos nórdicos, que enchem os corações e veias pulsantes de amantes de poesia e contos heroicos? Os belos simbolismos e tradições celtas? As riquíssimas construções dos panteões egípcios e subsaarianos? As encantadoras histórias ancestrais das antigas religiões orientais?

Ora, o que faz Tom Zé, em sua canção, não é senão o mesmo: mas utilizando-se da mitologia cristã.

Agora, somos obrigados a crer nessas coisas, por achá-las bonitas? E, se não cremos, não podemos admirá-las? O verso de Senhor Cidadão é confortável porque estamos inseridos na cultura religiosa da qual ele faz parte – e eu o acho bonito, por mais que, mesmo sendo cristão, não acredite nele. Mas basta uma música, um livro, um filme, um discurso, uma pessoa exaltar ou fazer uso de outra crença – de outra mitologia – para fazermos pouco caso, diminuirmos e, em casos extremos, incomodarmo-nos. De uma forma geral, não enxergamos as duas coisas pelo que realmente são: a mesma.

Rimos quando o hindu agradece à Trimurti.
Recriminamos quando o muçulmano louva a Alá.
Fazemos pouco caso quando o rastafári cita Jah.
Estranhamos quando o artista canta a Umbanda.
Até apontamos o dedo quando Raulzito disse que “O Diabo é o pai do rock”.

Em nome de quê?

Eu não quero nem propor o debate da tolerância. Minha pergunta é: onde fica a poesia? 

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A quem interessar possa, fica o convite para ouvir e analisar pessoalmente a música de Tom Zé. Só posso dizer que vale muito a pena, e que o refrão, em especial, me fisga de jeito. O resto da letra é um show aparte.

 





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