Moral, Tabus e o Ademre

(Contém pequenos spoilers do livro O Temor do Sábio.)


Em O Temor do Sábio, de Patrick Rothfuss, somos apresentados a uma sociedade chamada Ademre. Os ademrianos eram um povo de renegados, que viviam sendo expulsos de todas as comunidades que chegavam. Assim, acabaram se assentando num lugar que ninguém queria: os Montes Tempestuosos, uma região isolada e inóspita, onde venta muito. Lá, as árvores ficam inclinadas, qualquer construção comum acaba ruindo, e é muito difícil ouvir o que alguém diz.

Dessa forma, com o passar dos séculos, a sociedade ademriana acabou desenvolvendo uma cultura única, adaptada ao meio em que existia. Todos os hábitos e engenharia ademrianas são adaptadas para funcionar nos Montes Tempestuosos. Enquanto o resto das civilizações dos Quatro Cantos são retratadas como análogas a um modo de vida europeu (no cenário de fantasia), o Ademre é estranho para todas. Isso principalmente devido ao seu código de comunicação, que constitui uma infinidade de complexos sinais de mão, e acaba sendo mal interpretado pelos estrangeiros. Mas o que mais diferencia os ademrianos de "nós" é algo que só pode ser visto quando se olha de perto:

A moral.

Grosso modo, nossa moral é um código autoimposto que visa a preservação daquilo que nos é querido e o bem-estar físico e psicológico das pessoas que nos importam. Diz respeito aos costumes, como devemos nos portar em determinadas situações e em relação a outras pessoas, em diferentes níveis de proximidade e hierarquia social. Um indivíduo pode ter seu próprio código moral; mas quando vários indivíduos precisam conviver em grupo, acabam se adaptando aos códigos morais uns dos outros. O resultado disso é a geração de uma moral social: um código que é senso comum entre a maioria da população, que diz respeito à preservação do grupo, muitas vezes acima da vontade ou do bem-estar pessoal do indivíduo. Ao longo das gerações, acaba consolidando tradições, e resulta num "modelo" a ser seguido—a que hoje, no Brasil, chamamos "a moral e os bons costumes".

Acontece que quando uma moral social é solidificada, naturalmente constitui um escopo de regras não-escritas que, espera-se, todos os membros dessa sociedade devem cumprir. As atitudes que vão contra a moral são imorais, ou seja, não-morais. Não gostamos que firam a moral da sociedade. Portanto, para todo código moral, temos um corpo de ideias, pensamentos, palavras e atitudes que são consideradas imorais: a elas, chamamos tabus.

Tabus não são necessariamente ruins. Apenas não queremos que eles sejam expostos demais, porque isso vai contra a moral. Por exemplo, quando se fala de tabu, na nossa sociedade, uma das primeiras coisas que nos vêm à mente é certamente sexo. Acho que concordamos que sexo é uma coisa boa. (Quase) Todo mundo gosta de sexo, sem falar no detalhe de que é uma prática fundamental para a preservação da espécie. Mesmo assim, é um tabu, não é?

Bem, não para os ademrianos.

No Ademre, o sexo é entendido como uma atividade lúdica. Quase como jogar ping-pong. Eu estou a fim de transar, chego numa amiga minha e proponho que a gente transe, transamos, cada um vai pro seu canto, satisfeito (ou não). Faz-se sexo em público, com qualquer pessoa, sem restrição (desde que ambos queiram, é claro; e já tenham idade, o que é por volta dos 12-13 anos). Provavelmente esse costume tem a ver com o fato de o Ademre ser uma sociedade matriarcal, onde o sexo nunca foi estigmatizado porque as mulheres nunca foram tidas como propriedade de ninguém—e nem tampouco são os homens, embora eles sejam vistos como completamente dispensáveis.

Os homens ademrianos são aqueles oprimidos conformados. "É isso aí, nós somos um lixo, que bom que as mulheres nos deixam viver." Não, eles não servem nem para reproduzir. Os ademrianos não acreditam que sexo serve para procriar. Eles entendem que as mulheres engravidam naturalmente ao longo das vidas (o que é bastante compreensível, se você pensar a respeito).

Ora essa, então o que é considerado tabu no Ademre, se não sexo?

Lembra da coisa do vento? Que é difícil ouvir o que os outros falam? Que, por isso, os ademrianos desenvolveram uma complexa linguagem de sinais? Pois é. Para eles, a coisa mais preciosa que se pode ter de alguém é a voz. Não se fala em público. Você só conversa falando com pessoas próximas: amigos, família, professores, colegas de trabalho. Fala baixo, sem chamar atenção dos arredores. E a única coisa que você jamais, sob hipótese alguma, deve fazer perto de ninguém, é cantar.

Cantar em público é uma falta de respeito.

É obsceno.

É imoral.

Cantar é algo que se faz apenas com a pessoa que você ama, em seus momentos mais íntimos. Meio como... sexo, para nós.

Estranho, não? Para nós, sim. Arbitrário demais? Provavelmente não. Há-se de entender o que gera a moral, os costumes e os tabus. As condições e situações que propiciam esse entendimento.

De forma análoga, há-se de pensar em como o sexo se tornou um tabu tão grande na nossa sociedade. Os motivos por trás do silêncio—bem anterior ao controle de natalidade e às DSTs. Há-se de questionar se vale a pena manter esse silêncio. Se falar de sexo é algo assim tão reprovável. Se ser sexualmente liberal é realmente tão danoso à sociedade. Se essa coisa que torna o sexo uma "afronta à moral e aos bons costumes" vale a pena ser preservada.

Há-se de quebrar o tabu.

Mais que isso. Pense em todos os tabus da nossa sociedade. Pense no que é danoso e vil por essência, que machuca as pessoas, castra o bem-estar do próximo, destrói a sociedade. Pense neles: estupro, aborto, pedofilia, homossexualidade...

Quanto devemos falar? Quanto silêncio devemos manter? Quanto devemos praticar? Quanto devemos proibir? 

Certamente algumas práticas têm bons motivos para serem proibidas. Mas mesmo assim, talvez devamos discutir mais a respeito.

É possível, no entanto, que algumas delas não sejam tão ruins assim. Do que estamos nos privando, ou privando o outro? Em nome de quê? Da preservação da integridade social?

Ou de um corpo abstrato de regras autoimpostas?

Quando não queremos discutir, quando não queremos permitir, o que estamos de fato protegendo?

Queremos viver num mundo em que não se pode cantar?

O quanto é admissível falar em público?

The Wise Man's Fear 1, Marc Simonetti


You Might Also Like

1 comentários