[Review:] Sense8

Sense8, a estreia dos Wachowskis no formato de seriado, quebra paradigmas da sociedade e da ficção científica, e é um tapa constante na cara do conservadorismo


Hoje eu assisti aos três primeiros episódios da nova série da Netflix, escrita e dirigida pelos Wachowskis (The Matix), que estreou ontem no serviço de stream (a primeira temporada completa, claro). E preciso reiterar: shit's out melhor que a encomenda.


O antecipado drama épico segue as labutas pessoais dos oito protagonistas ao redor do mundo. O trabalho na psiquê dessas personagens e como a misteriosa ligação mental afeta seu comportamento como um todo é o ponto principal da série. Highlights no elenco incluem Jamie Clayton, Doona Bae (que estrelou previamente em outra produção dos Wachowskis, Cloud Atlas), e o astro de LOST, Naveen Andrews, no papel do sombrio mentor dos protagonistas, conhecidos como sensates.


Atire a primeira pedra quem não gritou Sayid!

É difícil, aliás, para o público apropriado, não idetificar diversos paralelos com o controverso clássico televisivo criado por J.J. Abrams e Damon Lindelof. O diferencial que se escracha no roteiro, logo de cara, porém, são os debates ético-morais da atualidade, discutidos aqui com tal naturalidade que a verossimilhança choca.

Eu preciso sublinhar aqui que eu estava ansioso pela estreia da série porque sou fã dos Wachowskis, mas não esperava ver cenas de sexo lésbico e problematização da transexualidade nos primeiros minutos do primeiro episódio. Ter contratado a atriz trans Jamie Clayton para interpretar um papel que representa sua sexualidade na tela foi um movimento fantástico por parte dos diretores que, não é segredo pra ninguém, apoiam inteiramente a causa gay (a própria Lana Wachowski é uma mulher transexual). E não é só isso: o episódio já começa jogando na sua cara que Nomi é lésbica (lide com isso, pseudomoralista consevador!), okay; mas só depois é revelado ao espectador que ela também se trata de uma mulher MtF (e agora os heterozões estão negando que pegariam ela antes); a simpatia que se cria pela personagem, que comemora o Orgulho Gay junto com sua namorada na abertura da série, já é tal que não importa o quão duro seja o seu coração, a cena em que a mãe de Nomi começa a chamá-la repetidamente de Michael é dolorosa.


Amanita e Nomi compartilham frustrações na tarde do Orgulho Gay.

Mas a quebra de paradigmas não para por aí: logo no primeiro episódio, o protagonista masculino branco hétero cis estadunidense da série, que acontece de ser um policial de Chicago, salva a vida de um jovem traficante em vez de prendê-lo ou por uma bala em sua cabeça, a despeito de todos os protestos de seu parceiro, e é obrigado a suportar pressão da família e da DP por isso. No segundo, descobrimos que um dos lead characters é um gay que se recusa a sair do armário para não prejudicar sua imagem pública (e seu namorado é ninguém menos que o Miguel do Rebelde, agora barbado e de óculos hipster). No terceiro, a jovem empresária coreana de sucesso se revela um demônio no submundo da luta-livre ilegal, onde extravasa todas as suas frustrações profissionais; e isso te deixa com apenas uma protagonista feminina "certinha" (visto que a quarta, Riley Blue, é nada menos que uma DJ islandesa escondida em Londres dançando sobre drogas e conflitos do submundo). O núcleo da indiana Kala Dandekar, porém, envolve conflitos sociais e religiosos dentro do mundo hinduísta.

Os últimos dois cenários revolvem em torno das desventuras de um bandido e golpista alemão amante de música, e de um jovem motorista de transporte coletivo em Nairóbi, capital do Quênia, que se dedica em tempo integral para salvar a vida de sua mãe moribunda, que sofre com AIDS.


Sun Bak (Doona Bae) e Capheus (Aml Ameen) em promocional da Netflix.

Brian J. Smith contracena com Tuppence Middleton neste promocional.

Tuppence Middleton estrela como Riley Blue em pesadas cenas tarantinescas. Sense8 é uma série com muitas waifus.

Os temas polêmicos abordados em Sense8 não seriam verdadeiramente interessantes se não fossem tão despretensiosos, naturais; se não dissessem: "Ei, espectador, abra os olhos! Este aqui é o mundo em que você vive, e muitas vezes essas pessoas estão sofrendo por causa da sua hipocrisia!". De início, o espectador ficará tão vidrado na construção (e desconstrução) da complexidade dos personagens e ambientes que os cercam que a parte da ficção científica realmente ficará em segundo lugar. Ela não tarda a se fazer notar, porém, intercalando e interligando os sempre instigantes dilemas éticos, morais, sociais, políticos e religiosos que incrementam a trama intrincada da série. É impossível deixar de notar também a influência declarada dos videogames e da cultura pop nipônica sobre os criadores, neste roteiro impecável de encher os olhos e a alma. Os três primeiros episódios não chegam a construir um objetivo preciso para a trama, mas já conquistam seu coração sem precisar.


Protagonistas da série posam juntos. Em sentido horário, a partir do canto inferior esquerdo: Capheus (Aml Ameen), Sun Bak (Doona Bae), Will Gorski (Brian J. Smith), Riley Blue (Tuppence Middleton), Kala Dandekar (Tina Desai), Lito Rodriguez (Miguel Ángel Silvestre), Wolfgang Bogdanow (Max Riemelt) e Nomi Marks (Jamie Clayton).

O único downside que talvez possa incomodar a alguns é o fato de que, na maior parte do tempo, todos os personagens falam em inglês. Apesar de que isso seja justificável em muitos casos e todos apresentem sotaques adequados a seus países e etnias, no fim não é nada além de uma pequena liberdade artística, um recurso de roteiro usado pelos autores, para que a história, já complicada, não ficasse muito cansativa (afinal, não é só no Brasil que muita gente não gosta de ler legendas). Mas, pensando duas vezes, inglês é a língua universal, certo?

Pela primeira vez, agora, os Wachowskis têm tempo, espaço e investimento para explorar suas personages e debater seus temas sociais e existenciais com uma boa dose de ação, drama e sci-fi que eles tanto gostam. Já dá pra ver nitidamente esta série estourando no mainstream, e lá para a quinta temporada (espero que façam oito) começando a cair no desgosto do grande público que pode começar a achá-la "viajada demais". Como eu disse, por muitas vezes é difícil não associá-la a LOST. Aliás, se você gostou de LOST, Matrix e Cloud Atlas, esta série tem tudo para conquistar você.

Interpretações digníssimas, um elenco de apoio extraordinário, produção técnica fantástica e um humor maravilhoso adequado ao nível do drama e do suspense da atmosfera geral terminam de ornamentar esta novidade de must-see. Já com muitos críticos elogiando a ousadia e o resultado final da parceria dos Wachowskis com a Netflix, Sense8 tem um potencial raro para o drama de fantasia e ficção científica na televisão mundial. Após segurar meus gritos ao final do terceiro episódio desta gema televisiva, eu só posso aplaudir de pé e citar aqui o que o meu fabuloso amigo Jeeses fez questão de me afirmar e reafirmar ininterruptamente pelos últimos seis meses, que já estava me dando dor de cabeça: "Quando a Netflix diz sim, ninguém pode dizer não!"

Parabéns, Andy e Lana! Vocês acertaram de novo.

You Might Also Like

1 comentários

  1. *Mais uma vez cê exerceu o poder de convencer as pessoas a ler/assistir algo.*
    Ótimo texto, heart, mas isso não é novidade, é?
    Vou baixar Sense8 assim que terminar Arakawa.
    Parece-me extremamente interessante e cheia de feels... e, claro, tem a Doona Bae! *-*

    ResponderExcluir