[Crítica:] Não Pare Na Pista — A Melhor História de Paulo Coelho

CONTÉM SPOILERS

(CASO VOCÊ NÃO TENHA LIDO O DIÁRIO DE UM MAGO OU NÃO SAIBA QUEM PAULO COELHO É)


Paulo Coelho é o autor brasileiro mais lido, vendido e traduzido do mundo. O único autor vivo mais traduzido do que Shakespeare. Desde 2002, Imortal da Academia Brasileira de Letras, da qual é o único a fazer sucesso com romances esotéricos, de suspense ou fantasia (frequentemente não considerada "literatura séria"). Tal figura pode não agradar a todos, com seu jeito excêntrico e temáticas sobrenaturais, mas que sua história merecia uma cinebiografia digna, é inegável.

O longa tem direção de Daniel Augusto

Não Pare Na Pista é um bom filme, com uma produção extraordinária de cenário, maquiagens, figurino e fotografia, e performances incríveis. Filmado em locações no Brasil e na Espanha, conta com um elenco internacional (incluindo diálogos em inglês e espanhol sem legenda) e todo um trato hollywoodiano. Detalhe interessantíssimo é como o protagonista é interpretado por dois atores: os irmãos Ravel e Júlio Andrade, em diferentes fases da vida. O fato do filme não ter agradado tanto quanto gostaria, porém, reside na forma como a história foi contada.

Iniciando na juventude conturbada do autor best-selling, o público acompanha paralelamente sua juventude, início de carreira e eventual trabalho como letrista; sua fase adulta, quando da peregrinação pelos Caminhos de Santiago; e a aventura que fez com a esposa Chris em 2013, então já o Paulo Coelho que todos conhecemos. Das três linhas aqui divididas, a primeira é absolutamente a mais concisa e interessante em termos narrativos. Enquanto assistia, por mais que eu quisesse me interessar pela história da Ordem RAM e da iluminação de Paulo nos Caminhos de Santiago, encontrava-me constantemente ansioso para voltar a assistir aos eventos de sua juventude, tão melhores retratados que estavam.

A fase de sua meia-idade, por outro lado, não acrescenta muito à película. Totalmente dispensável, serve apenas para atrasar o passo e dar à audiência um gostinho do "velho cool" que é Paulo Coelho hoje. Como ele ainda não morreu (e nem se aposentou), honestamente eu não vi a necessidade de retratar a sua velhice.

Júlio Andrade como Paulo Coelho nos Caminhos de Santiago

Paulo Coelho teve uma vida conturbada, cheia de altos e baixos, momentos de contida insegurança e desvairada loucura. Sua cinebiografia, porém, certamente renderia um retrato bem melhor, caso melhor roteirizado. O problema mais evidente aqui é que os produtores do filme pareciam assumir com certeza que o público era totalmente conhecedor da história contada na tela. E, de fato, se você leu O Diário e um Mago e tem o mínimo de conhecimento sobre a vida desta figura marcante do meio artístico brasileiro, não há muito mais para descobrir aqui.

Na realidade, o filme parece se esforçar apenas para pontuar por cima eventos importantes à formação do Paulo Coelho que conhecemos:

  • Juventude conturbada √
  • Tratamento psiquiátrico √
  • Trabalho com teatro √ 
  • Revistas independentes √ 
  • Trabalho com Raul Seixas √ 
  • Prisão e tortura no governo militar √ 
  • Peregrinação pelos Caminhos de Santiago da Compostela √ 
  • Publicação de O Diário de um Mago, sem sucesso imediato √ 
  • Publicação de O Alquimista

Não digo por ser mais fã do trabalho de Raul do que do de Paulo Coelho, mas o ponto alto do filme é precisamente o início da parceria do futuro autor mais lido do Brasil com a futura lenda da música brasileira. Destaque para a interpretação fantástica de Lucci Ferreira como Raulzito, uma das mais fiéis (se não a mais) interpretações de celebridades que já vi retratadas no cinema. Sua maneira de falar, os trejeitos; foi de muito bom gosto dos realizadores contratar um ator conterrâneo da estrela para interpretá-la, mostrando na tela um baiano de verdade, com genuíno sotaque nordestino, bem distante daquelas imitações porcas geralmente encontradas nas telenovelas da Globo.

A cena em que Raul e Paulo estão compondo Al Capone deve ser a melhor do filme inteiro.

Lucci Ferreira como Raul Seixas.
No entanto, por mais que essa parte seja interessante e divertida, ainda que perdoando algumas liberdades poéticas tiradas para o filme, como Paulo recitando a Lei de Thelema no palco, visto que o próprio declarou nunca ter subido aos palcos antes de 89 (esta também é uma ótima cena, ainda que tenham deixado a citação pela metade); no fim ainda deixa a desejar. Raul é retratado como uma espécie de vilão, acabando por "roubar" créditos que devia a Paulo (ainda que n'O Diário de um Mago o próprio autor tenha descrito que Raul, para incentivar sua carreira como compositor, inclusive deu-lhe créditos por canções das quais ele nunca participara), e por fim abandonando-o ao exilar-se em Nova York. A relação profissional dos dois não é muito explorada além do Krig-Ha Bandolo (não sei como Paulo Coelho aprovou esta parte), e a reconciliação da dupla fica de fora, juntamente (é claro) com o reencontro em 89, junto a Marcelo Nova, pouco antes da morte de Raul Seixas. Outras figuras proeminentes na carreira de Paulo Coelho, como Elis Regina e Rita Lee, são ocultadas.

Por fim, o recorte na narrativa, inicialmente interessante, mostra-se desnecessário a esta altura. O filme tem menos de duas horas, consideravelmente curto para um longa biográfico, e poderia ter sido muito melhor caso excedesse este limite de tempo. A narrativa anacrônica não tem bons encaixes, e acaba evidente que seria bem mais interessante caso o filme tivesse se focado apenas na primeira linha. Depois, a separação da dupla Coelho-Seixas, levando Paulo a perseguir outros campos na carreira musical, finalmente culminando com seu burnout (onde começa a segunda linha), retirando-se para a Europa, buscando inspiração para perseguir a carreira de escritor que sonhou desde criança (muito bem retratado no início do filme). Afinal, Paulo lança O Diário de um Mago, que não obtém a expressividade desejada; mas não desiste e, por fim, escreve O Alquimista, primeiro encontrando resistência editorial, mas finalmente publicando e conhecendo sucesso e aclamação mundial no mesmo ano da morte de Raul. Que final seria esse, hã?

Momento onírico em que a dupla se apresenta junta no palco.
Apesar dos pontos fracos, porém, ainda julgo um filme bom, reconhecendo a qualidade artística aqui trabalhada, e altamente recomendado para os fãs de Paulo e Raul. Tudo bem que Raul aparece pouquíssimo para um filme que leva o título de uma das suas músicas, mas amantes do artista certamente se encantarão com o retrato se sua personalidade em tela. Algumas de suas mais famosas músicas embalam a película, assim como todo o misticismo e esoterismo que seria de se esperar de um filme sobre Paulo Coelho para fãs de Paulo Coelho escrito a partir de declarações de Paulo Coelho.

Acredito que o filme tenha sido muito mais feliz na mensagem que desejava passar do que na história que se propunha a retratar. Se o expectador é um fã de Paulo Coelho buscando conhecer mais da história do autor, não encontrará muita coisa. Mas se é um admirador da arte e gostaria de ser inspirado com boas indicações literárias e musicais, as encontrará de sobra.

E se for um artista apaixonado, dedicado ao trabalho, porém ainda inexpressivo e talvez desanimado, há de se identificar bastante com o Paulo Coelho da tela, ainda que sendo o carioca com berço de ouro que foi.



Não pare na pista. É muito cedo pra você se acostumar.


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