Nuverse

    Moço, segure a minha mão. A Terra é muito grande;
                    o bastante pr'eu me perder.”


Quando me mudei para o Juazeiro do Norte, buscando enfrentar pela primeira vez os desafios de morar "sozinho", vim também na expectativa, é claro, de conhecer novas pessoas e experiências. Estava farto dos grilhões culturais que as cidades pequenas do interior de Pernambuco me impuseram por anos. Não era possível que eu fosse passar a minha vida inteira vendo lindas realizações em momentos pequenos de grande emoção, aquela sensação de libertação, de valer a pena estar vivo simplesmente por estar ali naquele momento... apenas através de telas e livros.

    Vez por outra eu sinto saudades de coisas que eu não vivi.

Eu precisava das minhas noites repletas de teatro, música, cinema, conversa, debates e passeios pela cidade também. Eu precisava viver a sensação de me agrupar com algumas pessoas virtualmente desconhecidas em locais estranhos e partilhar noites inebriantes e imprevisíveis; encontrar algo inesperadamente inóculo, mas encantador, e que me fizesse sentir, saber que eu estava ali assistindo, apoiando, participando do surgimento de algo verdadeiramente relevante culturalmente.

Eu precisava disso. Eu estava desesperado por isso.

Minha alma gritava "carpe diem!", mas minha mente era incapaz de corresponder com a vida que me cercava.

Então, eu vim para o Juazeiro do Norte.

Minha vantagem aqui era que eu já conhecia um pouco da cidade e tinha alguns amigos. Vim morar no apartamento do meu amigo de longa data Gustavo Santos, e ele praticamente me sustentou por três meses até que eu encontrasse um emprego e pudéssmos dividir as despesas do lar. Foram três meses de muita caminhada, ônibus, conversa, entrevista, nãos... mas também de sorrisos, música e rostos diferentes. Foram três meses difícies e sofridos, mas também três meses de descoberta e prazer.

    Eles querem calar minha voz. Eles querem cansar todos nós.
            Pra não termos mais força pra cantar.

E foi numa das primeiras semanas que eu fui convidado por uma colega para comparecer ao show da banda de um amigo dela. Ele tocaria no salão cultural do BNB. Eu fui, mas ela acabou não comparecendo. Inesperadamente, porém, nesse evento eu encontrei com alguns amigos que nem imaginava ver ali. A banda seguinte era uma deathcore, que eu nem conhecia até então, mas era de uns trutas desses amigos meus. Só nesse momento eu fiquei sabendo que as apresentações se tratavam de uma agenda cultural do SESC, e que em todos os dias da semana shows seriam exibidos tanto no BNB quanto no SESC do Juazeiro. E era tudo gratuito.

Um dos meus amigos, o Israel, ao me encontrar lá, tirou logo uma onda: "Já tá curtindo as programações culturais da cidade, hein?!"

Ele nem sabia o quanto.

Muito animado com a agenda diversificada do SESC, fui a alguns vários shows naquela semana. Foi divertido, engraçado, conheci mais algumas pessoas novas e tudo o mais. Mas nada até então me tinha preparado para o espetáculo da sexta-feira à noite.

Foi quando, pela primeira vez, eu assisti, e ouvi — e senti, e vivi — a apresentação da banda Nuverse.

1,99 pelo meu Brasil desmascarado. Eu quero o troco de um centavo.
A impressão primeira foi muito impactante: a sonoridade da banda era uma coisa estranha e ousada: um amálgama de funk rock com samba, mas de uma forma tão gentilmente trabalhada que dava alegria de ouvir. Em algumas faixas, incorporava elementos de jazz e clássica, o que só tornava a música ainda mais prazerosa e surpreendente. Logo a performance da vocalista me capturou: uma garota que não devia ser muito mais velha que eu, segurando o microfone com a firmeza e determinação de uma profissional, citando versos claramente autorais, e declamando poemas que pintavam quadros expressionistas, ora cheios de júbilo, ora sombrios e amargos. O feeling era fácil de acompanhar enquanto os versos nus do grupo sambavam entre guerra, amor, vergonha, orgulho, melancolia, alegria, luto e esperança. A jovem cantora parecia pegar o público pela mão e liderar enquanto, com a naturalidade da liberdade, dançava com seus pés descalços e vestido esvoaçante — ou ao menos assim me pareceu.

Infelizmente o meu conhecimento deficiente da Música me impede de fazer uma análise total do som para além da poesia que a banda transmitia. Era tudo de uma beleza e harmonia ímpares, e eu gostaria de saber entrar em detalhes sobre o baixo e a bateria, mas na realidade a única performance (individual, porque a coletiva já havia conquistado meu coração) a que consegui me ater, além daquela da frontgirl, foi a do guitarrista de longos cachos louros. Ele usava óculos simples e, de longe, lembrou-me muito um amigo do Recife que toca baixo e é apaixonado por Metal. Diferente de João, este guitarrista não parecia tão adepto de estilos violentos, visto que deixava o choro melódico de sua guitarra guiar os passos de cada frase construída pelos demais instrumentos e pelos versos da vocalista. Ele vivia aquela música tanto quanto a garota.

Mas foi num momento em que o guitarrista pôs a guitarra de lado e posicionou-se ao piano, e a vocalista convidou um cellista, anunciando que a canção seguinte se chamava — e o título genial me fez sorrir — Flores Versos Amores, que eu soube que eu tinha acabo de encontrar, pela primeira vez, aquela sensação que eu tinha vindo procurar fora de casa. O tecladista começou a tocar uma base tão cheia de sentimento que era impossível não permitir que a letra penetrasse as profundezas do meu coração:

Eu os vejo daqui: são pássaros como eu já fui. Quantos voarão? Quantos cairão?
Quantos ficarão no ninho da vida?
Quando a execução de Flores Versos Amores chegou ao fim, eu quis aplaudir de pé. Porém — feliz ou infelizmente —, ainda não era a última música da noite, e eu acabei me contendo. Atitude da qual ainda me arrependo ligeiramente.

    Tenho a sensação de levitar...

João Victor Coelho, então baixista da banda.
Ao final da noite, enquanto meus amigos se dirigiam diretamente para fora, eu fiz questão de descer e cumprimentar aqueles músicos geniais. Eu ainda não sabia, mas dentro de pouco tempo eu passaria a conhecê-los mais do que esperava, e eles me permitiriam alguns dos momentos mais vívidos da minha passagem pela capital caririense. O guitarrista chamava-se Jean Paulino, e era o principal compositor da banda. A vocalista chamava-se Jéssica Xavier, e era a poetisa por trás de todas as letras. Eles eram um casal (o que parecia explicar a harmonia sinérgica que ambos partilhavam no palco), e juntos encabeçavam o projeto que nascera ali mesmo, na Cidade do Padre Cícero, apenas um ano antes.

Naquela noite, eu cheguei em casa extasiado. A minha sensação era de ter acabado de testemunhar os primeiros passos de um gigante da Música nacional.

    Porque quando eu seguro a tua mão,
            o mundo inteiro é nosso mundo. Eu posso o que for.


Jean Paulino, guitarrista, tecladista e compositor.
Meses depois, quando eu já era algo estranho entre amigo e fã dos músicos, numa noite fria após a estiagem, ao fim de um show com menos público do que se esperava, Jéssica me perguntaria, meio insegura, meio duvidosa, se eu realmente achava que a banda "tinha futuro". Eu sou péssimo com as palavras, quando conversando pessoalmente, e não tenho certeza de que minha resposta risonha — nem lembro o que foi, agora — foi algo reconfortante ou encorajador para ela, naquele momento. Mas eu não saberia como dizer, assim, que aquela banda era de fato extraordinária, que era uma das coisas mais bonitas e motivadoras que eu já tivera a felicidade de conhecer na vida; que, se eu morasse no Sul e os tivesse conhecido através da Internet, eu adoraria do mesmo jeito, e que por isso o fato de eu poder conhecê-los de perto, assistir a quase todos os shows, acompanhar sua jornada e inclusive assistir a alguns ensaios, era uma espécie de realização pessoal.

Jéssica Xavier, frontgirl, vocalista e letrista.
Neguinha, mulher e nordestina, desde
pequenininha aprendeu a ter fé.
Desde que me mudei para o Juazeiro do Norte, eu já comecei a construir algumas memórias duradouras. Já assisti a um certo número de shows e conheci diversos artistas novos — de fato, pela primeira vez na vida, eu me sinto inserido no meio artístico como nunca antes —... mas nenhum deles me despertou o encanto que as experiências com a Nuverse me despertaram.

A Nuverse é uma banda que tem tudo para crescer e conquistar milhares de brasileiros. O feeling, a honestidade, a originalidade... o esforço, a harmonia, a riqueza poética e musical. Desde a característica intro de Manhã até os arrepiante solo final de Guerras. Na realidade, imaginar que uma banda com tal potencial existisse e permanecesse ativa por uma vida inteira sem nunca atingir renome nacional... seria admitir que não há sensibilidade artística em nosso país.

Por mais que alguns possam dizer que essa é a triste realidade, é algo em que me resigno a não acreditar.

No dia 31 de agosto, a Nuverse lançou oficialmente seu primeiro álbum completo na rede. A escalada de um grupo de artistas como esse é sempre complicada, geralmente contando com o mínimo de recursos e apoio possível. Eu só gostaria de pedir que, se você leu este texto até aqui, abra seus ouvidos, sua mente e seu coração, e se deixe encantar pela poesia, verbal e musical, das canções feéricas da Nuverse:



De peito aberto, vamos à luta.
Ó, pátria amada! Salve-me...

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1 comentários

  1. Mano assim... Eu tive a oportunidade de gravar o parte do cd dessa galera, fiz os solos prática mente. Lembro das vezes em que conversávamos no telhado os mistérios da vida e o futuro de cada um...
    E Mano... ao ler sua postagem me trouxe tremenda alegria, pois hoje estou em Fortaleza e não posso acompanhar os passos da banda, mas através do seu escrito eu vejo que tudo que conversei com Jean e com a Jéssica, que são à frente, está acontecendo.
    Dos blogs que andei lendo o seu tem sido feito com muito amor e carinho, coisa que faz toda a diferença, pois vejo que acredita no que diz e faz.
    A Nuverse merece sim toda referência.
    Espero ver mais matérias e já estarei fuçando o resto do seu blog à procura de mais matérias escritas com a mesma paixão e vida, sobre outros assuntos, claro.

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