Casebre (Crônica IV)

– Chega – ele falou em meio a uma última baforada de fumaça cinzenta. – Chega disso por hoje, antes que eu morra do pulmão. – O cigarro ainda estava pela metade, mas ele segurou-o entre os dedos e atirou-o para longe na rua. Fiquei assistindo à pequena brasa se extinguir no asfalto.

Era final de expediente, o chefe tinha saído e o movimento estava baixo, então estávamos sentados na calçada pegando um ar enquanto não chegava nenhum cliente. Estourara a meia-noite e eu só pensava em botar as mesas para dentro e voltar pra casa, mas tinha que esperar Ricardo chegar.

Eu não falei nada sobre o cigarro, mas como que a minha curiosidade fosse genuína, ele falou mesmo assim, atravessando o não-silêncio constante da madrugada:

– Eu não gosto de cigarros, sabe? Odeio fumar.

– E por que fuma? – perguntei, mas sem me dar ao trabalho de olhar para ele. Eu sabia que ele também não estava olhando para mim. Era assim que as conversas funcionavam por ali.

Ele riu. Heh! Aquela risada dele, eu nunca sabia se era riso mesmo ou deboche. Então, a resposta: – Influências, cara! ... Influências.

Eu franzi a testa para a praça movimentada do outro lado. Não o imaginava andando com pessoas que se pudessem considerar uma "má influência" para ele. Ele era um cara simples, pé no chão, mas nunca foi bobo. Se aquele sujeito já tinha colocado qualquer tipo de droga para dentro do organismo, fora por iniciativa própria.

Eu não questionei, mas a pergunta pairava no ar como música. A música do Guns 'n Roses que estivera tocando até uns vinte minutos antes, quando o DVD chegou ao fim. A lanchonete estava em silêncio, mas na realidade, ali, a música nunca parava. Mesmo agora, no silêncio do final de expediente, havia rock em notas caladas entre as paredes coloridas. E a pergunta pairou no ar como o solo de November Rain, que lhe arrancava um sorriso saudoso, e ele a ouviu.

– Slash, cara – ele puxou outro cigarro do bolso, mas ficou só olhando. Agora eu olhava para ele, e ele sorria. Era um sorriso honesto, o tipo de sorriso que me fazia gostar das pessoas, e que ele exibia constantemente. – Esse cara me influenciou demais, tu sabe, eu te disse. Essa música, cara... eu sei que tu não é fã e tal, mas eu sei que tu entende. É porque não é da tua geração.

Mas ele estava certo. Eu entendia. O fato de eu não ser fã de Guns 'n Roses não significava que eu não entendesse.

– A guitarra, a música... – ele continuou. – Nem tanto pelo Axl, mas pelo Slash, sabe? Foi por causa dele que eu trilhei esse caminho. – O caminho de um músico amador realmente apaixonado pela arte; sem firulas, sem máscaras, sem pseudointelectualidade. – Mas para o bem ou para o mal, né...? Às vezes a gente não sabe. Fosse pela música, ou fosse por isto aqui – ele me mostrou o cigarro, e depois voltou a guardá-lo –; não foi porque eu quis, mas era a influência. Quando eu via aquele cara, com aquele cabelão, e aquela cartola, todo estilo, e o cigarrinho na boca... era influência, mano. A gente faz besteira, a gente não escolhe.

Eu sabia que a gente escolhia, mas eu entendia o sentido das palavras dele.

Voltei a olhar para a rua. Ele também. Houve mais silêncio entre uma nota e outra. E nossa terceira colega saiu da cozinha para se juntar a nós na calçada.

– Cadê Ricardo? – perguntou. O silêncio era uma boa resposta. Ela olhou para mim e sorriu, com aquele olhar de ressaca de sempre. Sentou-se ao lado dele e pôs-se a reclamar de alguma coisa qualquer da noite. Eu ouvia calado; ele ria conforme. Ela ria também. Havia alegria no trabalho, tanto quanto música nas paredes. Havia atmosfera na noite, sempre aquela boa atmosfera do final do expediente. Eu queria aproveitar mais antes de voltar para casa.

Ela parou de falar enquanto os risos morriam juntos. O último sweep do solo no sereno da madrugada. Sem tornar o olhar para ele, ela perguntou:

– Tem um cigarro?

Ele tinha.

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