"Olha, mãe! A coruja!" (Crônica III)

Uma semana de cobrança, trabalho acumulado, injustiça, isolamento, muito stress e pouco sono me deixou uma pilha de nervos, e às vezes eu tinha vontade de gritar, mas reprimia para economizar a voz. O trabalho não valia mais que a minha saúde, não agora que minha garganta estava melhorando. A turma bagunçava, gritava, não deixava o professor dar aula... mas mesmo uma turma de crianças de dez anos tem empatia o suficiente para perceber quando um professor está chateado, desanimado, e, tão logo perceberam isso, passaram a repeitar o seu momento.

Na outra turma, todas as crianças estavam sorridentes e amigáveis, com menos discussões, menos reclamações e menos delações que nas aulas anteriores. Fui muito bem recebido por eles, como sempre, e assim que pus meus materiais no birô, uma garota veio dos fundos da sala para se dirigir a mim e pedir educadamente: "Professor, não grita hoje não, nem bate no quadro, por favor..."

A semana foi um saco, mas já estava quase no fim. Ao final do dia letivo, pedi para conversar com a minha diretora. Preciso ser grato às minhas chefes da Escola Gente Miúda, que são exímias pedagogas e muito gentis e pacientes em lidar com diferentes tipos de pessoas de todas as idades. Preciso agradecer pelo apoio e compreensão que me despendem, e pela ajuda que me dão quando preciso. Saí da escola hoje um pouco mais leve.

No caminho de volta para casa, passei no mercado para comprar comida. Enquanto esperava na fila do caixa, a cesta no braço pesando uns dois quilos, já conseguia manter a mente mais tranquila, afastada mesmo dos trabalhos que sabia que precisaria dar conta assim que chegasse em casa. Foi nesse momento de introspecção que uma voz infantil às minhas costas me surpreendeu:

‒ Olha, mãe! A coruja!

Girei o pescoço para encontrar a menininha de um metro e meio que apontava para a minha mochila. Eu sabia que ela estava falando do chaveiro de biscuit que Ingrid me fizera no ano passado. A reação da mãe foi, natural(infeliz)mente, puxá-la pelo braço e dizer: "Quieta, menina! Deixe o moço em paz!"

Eu me limitei a sorrir para a menina. Voltei a encarar o caixa, esperando a minha vez.

Então, novamente, a menina:

‒ Mãe! A caveira!

Eu não olhei para a menina desta vez, mas sorri. A caveira é um chaveiro de biscuit do jolly roger dos Chapéus de Palha que eu ganhei de um lojista num stand há uns dois anos, na ocasião em que fiz cosplay do Almirante Kizaru.

Por fim, pela terceira vez:

‒ Olha! Mãe! É a Íris e o Jake!

Olhei para a menina e respondi:

‒ É! É a Íris e o Jake!

‒ Tu assiste? ‒ perguntou a menina, deslumbrada. ‒ Eu assisto! No Cartoon!

‒ Eu assisto na Internet ‒ respondi sorrindo.

A mãe me sorriu também, um sorriso meio sem graça, de quem pede desculpas. Gostaria que ela não achasse que tinha algo de que se desculpar.

Chegou a minha vez. Deixei para trás a pequena fã de Adventure Time para retomar meu caminho pra casa. Meu espírito estava mais leve antes, mas agora eu conseguia sorrir. Enquanto a noitinha caía áurea sobre o centro do Juazeiro, eu só conseguia pensar que é como o Sam falou: existe algo de bom neste mundo pelo que vale a pena lutar.

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