Psicotrópico [Crônica VI]

As pessoas com espíritos atormentados vivem uma infinita sucessão de altos e baixos: nalguns dias, conseguem manter-se longe de todos os seus demônios e sorrir, aproveitando as coisas grandes e pequenas da vida; noutros, sentem que não existe razão para sair do quarto, e vivem um conflito interno em que preferem que ninguém lhes dirija a palavra ao mesmo tempo em que se sentem rasgar por dentro na ânsia de despejar todas as suas frustrações no próximo.

Hoje, eu estava na segunda situação.

Eu faço parte de uma comunidade global na qual todos os membros ‒ em teoria ‒ prezam pelo bem-estar uns dos outros. Existe algo de reconfortante em saber que se pode chegar em praticamente qualquer canto do mundo e contar com o apoio dessas pessoas. No entanto, aqui onde moro, há muitos anos já não sinto isso.

Esta manhã, sentia-me especialmente esmagado pelo acúmulo de diversos pesares pretéritos somados a uns imediatos, recém-chegados. Sentei-me na calçada, sem estado de espírito para permanecer, sem vontade de voltar pra casa, e pressionado pelo dever moral de que devia ficar. Todas aquelas pessoas que teoricamente prezam por mim a menos de vinte metros, e ninguém se importando. E eu, com eles? Tampouco. De que lado é a culpa desta relação não estar funcionando? Ambos, talvez. De nenhum, mais provável. O fato é que ninguém se importa o suficiente para ir além do "Tudo bem?", e eu ‒ por mais horrível e destrutivo que isso soe ‒ não sinto falta.

O que mais me incomoda é que nos meses ‒ e anos ‒ passados, as minhas responsabilidades para com o grupo parecem ter eclipsado a minha existência como indivíduo. Em vez daquele apoio e preocupação sincera que devia ser bilateral, o que eu costumo receber constantemente são cobranças. Cobrança atrás de cobrança atrás de ordem atrás de culpa. E a esta altura, honestamente, a minha vontade de cumprir com essas obrigações anda cada vez mais rara.

Meu pai foi até mim após pouco mais de uma hora. Deu-me a chave e disse "Vá pra casa". Sem nenhum impulso em particular, eu obedeci. Nesse exato momento, dois homens colavam um cartaz na parede do prédio, anunciando um evento religioso; meu pai perguntou se eles tinham permissão, ao que eles responderam tropegamente que sim. Eu saí antes de ver o desfecho da cena.

A meio-caminho de casa, passei por um carro parado no cruzamento. Eram os dois homens de logo antes. Continuei meu caminho, mas eles me alcançaram, e o mais jovem chamou-me "Ei rapaz!", estendendo um folheto.

Peguei por educação. Saí sem responder. Eles seguiram seu caminho.

Eu tinha certeza de que era um convite para alguma igreja, mas pus-me a ler mesmo assim (afinal, palavras vistas são automaticamente lidas). Eu estava apenas meio certo.

O texto do folheto dirigia-se especificamente a vítimas de depressão. Apesar de não mencionar a desordem em momento algum, descrevia-a com precisão. Chegava a insinuar que o Rei Davi, atormentado pelo peso de seus pecados, também sofrera desse mal. No fim, sugeria que a solução para tal problema seria encontrar a Cristo, terminando numa nota de caráter RPGístico que me fez sorrir: "Você gostaria de aceitar JESUS CRISTO como seu salvador pessoal? >SIM >NÃO"

Amigos, igreja nenhuma recupera uma pessoa de transtornos mentais. A fé, por si só, não é o suficiente para suprir o vazio existencial e as forças inexoráveis que causam o sentimento de impotência e irrelevância. Se assim fosse, eu jamais teria sentido essas coisas, uma vez que nasci dentro dessa organização que é A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ‒ uma organização fantástica, a propósito. Eu e toda a minha família fazemos parte dela, e eu estive em contato com o espiritual (cristão) e o intelectual em iguais doses desde a tenra idade; mas isso não preveniu que eu tivesse esses sentimentos horríveis por toda a vida.

Não.

Não isso, folheto. Se sua sugestão resolvesse meu problema, ele nem existiria em primeiro lugar. Não. Não a proposta de solução; mas a simples atitude do rapaz, de olhar para um estranho, perceber o seu estado mental quando ninguém mais o observa, e importar-se o suficiente para parar o carro e entregar-lhe uma papeleta específica. Essa pequena atitude valeu mais do que praticamente tudo o que a minha comunidade fez por mim desde que voltei pra cá.

Obrigado, estranho, pela sua abordagem RPGística da aceitação de Cristo que me fez rir.

As pessoas precisam de mais atenção que cobrança. A vontade de trabalhar só virá com motivação verdadeira e o sentimento de utilidade. A religião deve ser uma opção, não imposição. As convicções pessoais não devem ser motivo de discriminação. Enquanto as pessoas ao redor não entenderem essas coisas, aqueles com mentes oprimidas permanecerão presos em suas jaulas invisíveis. Quanto mais me cobram e reclamam, menos desejo eu tenho de colaborar; menos eu acredito em mim mesmo e nos meus objetivos pessoais, e mais vontade tenho de ficar parado, sentado, assistindo o tempo passar.

Obrigado a todos vocês que se importam. E obrigado a todos vocês que não desistiram. A existência de vocês, por si só, é uma razão para viver.

Este texto é mais um desabafo do que qualquer coisa. Não tinha intenção de escrever uma coisa interessante com um desfecho legal. Então fica por aqui, o psicotrópico da semana.

BÔNUS: Quando cheguei em casa, minha cadela pulou em cima de mim várias vezes e fez questão de ficar comigo no quarto. Eles constantemente sabem do que a gente precisa, mais do que os humanos. <3




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1 comentários

  1. Não sei quem é você, mas espero que esteja bem...

    E volte a escrever por aqui, você transcreve a sua humanidade com muita precisão, nos faz quase que sentir as suas emoções. Belíssimo texto (independente da tristeza que ele carrega)

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