[Resenha:] Cemitérios de Dragões



Em um mundo ao mesmo tempo maravilhoso e obscuro, onde a morte espreita em cada canto na forma de perigos diversos, muitas raças vivem em medo e vigilância e demônios oprimem e conquistam, encontrando pouca resistência em sua escalada de poder. Aqui é o Cemitério, um mundo entre mundos, onde povos de diferentes origens, dimensões e tempos se encontram, e o palco do novo romance de aventura fantástica de Raphael Draccon, o consagrado autor carioca de Dragões de Éter.

“– Tive uma idéia!
– Provavelmente não das mais fáceis, nem das mais simples.
– Como as melhores coisas da vida.”



O livro segue os pontos de vista distintos de cinco personagens principais, humanos que, sem mais nem menos, se encontram em diferentes locais do Cemitério: Derek, um soldado estadunidense obrigado a trabalhar como escravo para os desprezíveis dracônicos; Amber, uma garçonete irlandesa praticante de artes marciais mistas, presa numa cela há sabe-se lá quanto tempo; Romain, um traceur francês condenado à morte num vilarejo simples logo que acorda; Daniel, um nerd nipo-brasileiro que há meses vem trabalhando como assistente de dentista naquela mesma vila; e Ashanti, uma guerrilheira ruandesa que se une a um grupo de monges guerreiros num jogo político no epicentro de uma guerra prestes a estourar. Como e por que eles foram parar lá são questões cujas respostas desconhecem, mas conforme eles adquirem seus objetivos e lutam para sobreviver, vão-se encontrando um a um, prestes a descobrir as respostas para perguntas que nem sabiam que tinham. Alternando entre os cenários, a narrativa acompanha suas trajetórias individuais, revelando aos poucos o passado de cada protagonista, ao passo em que vão se envolvendo cada vez mais numa orquestra épica de perseguições, política, guerra e sangue num crescendo frenético.


“– Algo dentro de vocês agrada seres sombrios. Ambições, descontrole, ira excessiva, personalidade bélica. Algo sedutor o suficiente para eles se interessarem por tentá-los para as sombras.”

Brilhantemente construído com tudo o que uma dark fantasy digna tem direito, Cemitérios de Dragões já começa com um tom sombrio e misterioso, que só vai se acentuando conforme os personagens avançam e fazem novas e incríveis descobertas. Num mundo povoado por criaturas diversas e repleto de cenários fantásticos de tirar o fôlego, entre templos monumentais, prisões deprimentes, árvores metálicas e gigantescas florestas bioluminescentes, uma aventura envolvente toma forma.

Sendo o primeiro volume numa trilogia planejada, já intitulada Legado Ranger, este volume passa, a maior parte do tempo, a confortável impressão de que as coisas ainda não começaram, e quando você perceber, já devorou metade do livro. Todas as personagens são bem-definidas e vivas na sua cabeça: sejam os guerreiros convictos de seus ideais, os familiares dispostos a se sacrificar por amor, os amigos que servem de alívio cômico (mas mesmo assim têm seus momentos emocionantes), ou mesmo o terrível e temível Demônio-Rei Asteroph, que logo no início se estabelece como um vilão aterrador… e, até o final deste primeiro volume, você aprenderá a respeitá-lo.

“– […] Demônios são um tanto viciados nisso…
– É isso que move você, demônio? – perguntou ele. – Vícios?
– É isso que move todos os demônios.”

Segundo o autor, o Legado Ranger é uma homenagem, uma releitura sombria dos Tokusatsu e Super Sentai japoneses que povoaram as infâncias dos jovens brasileiros nos anos 90. Essa característica logo se torna clara no texto, mas o mais incrível aqui – e foi nesse ponto que passei a respeitar ainda mais a obra que já me cativara pelo estilo narrativo – é que isso realmente não parece em momento algum infantil, forçado ou incoerente. Muito pelo contrário: toda a mitologia criada em torno do mundo do livro torna perfeitamente plausível o equilíbrio entre fantasia medieval, magia e tecnologia que o autor mistura com habilidade míster.


As clássicas séries de Super Sentai inspiraram a obra de Draccon.

O ritmo e estilo da narrativa onisciente impressionam: combates deveras tensos (e muito bem trabalhados, especialmente uma situação envolvendo Ashanti mais para o final), reviravoltas inesperadas e sequências de ação do tipo que fazem o leitor saltar e prender a respiração. Com diálogos verossímeis, o suspense, terror, drama, romance e filosofia presentes tornam toda a experiência ainda mais complexa, impressionante e realista. Ainda, dada a barreira linguística enfrentada pelas personagens, o autor escolheu empregar um recurso interessantíssimo para representar os idiomas diferentes, mudando a fonte do texto em diversos diálogos, de acordo com a língua falada.

Já a trama é daquelas que, se muito for revelado, já estraga bastante da experiência; portanto, eu vou me limitar ao pouco que já falei aqui (e que já acho demais).

O futuro será de guerras, demônios e dragões.


Por fim, para não deixar de citar, a única coisa que me deixou estranhando no estilo do autor foi tocante às descrições: em ambientações, é perfeito; ler é imaginar estar lá: cenários deslumbrantes, oníricos, dignos de jogos que já há algum tempo sinto falta de jogar. Mas, em personagens e criaturas, é diferente: a descrição dos personagens humanos são, em sua maioria (há exceções), bastante superficiais (o que não é necessariamente ruim, dependendo do leitor); e as raças e criaturas têm toda uma atenção especial: sempre que um ser novo aparece, temos a narrativa interrompida em prol de toda uma explicação não apenas física, mas biológica da criatura em questão, resultando em parágrafos inteiros dedicados a aparências e ao funcionamento de seus corpos. Na verdade, eu nem sei o que achar disso até agora, pois não foi algo que achei ruim durante a leitura, apenas bem diferente do que estava acostumado, porque, de fato, era sempre uma parte interessante (apesar de demasiadamente distrativa). Além disso, algo que me pareceu realmente deslocado (porque as armas futuristas não o são) foram as muitas referências à cultura pop feitas por Romain e Daniel, que acabam soando estranhas e não naturais, diferente do trabalho sutil e divertido feito pelo mesmo autor em seus Dragões de Éter.


Raphael Draccon autografando no lançamento do livro junto à esposa,
Carolina Munhóz, autora d'O Reino das Vozes.
Em suma, a leitura proporciona diversão e reflexão na medida certa; nem tão pesada, mas também nem leve; com uma construção eficiente e algumas passagens, especialmente diálogos, bem marcantes. Se há resquício de impressão de que este livro possa ser, de alguma forma, bobo ou infantil, ele terá sido completamente obliterada ao longo de suas poderosas páginas. Para quem gosta do gênero, esta nova obra de Raphael Draccon é, indubitavelmente, um prato cheio.


FICHA TÉCNICA


  • Livro: Cemitérios de Dragões
  • Autor: Raphael Draccon
  • Gênero: Aventura, Drama, Romance, Fantasia, Dark Fantasy
  • Número de Páginas: 350

  • País: Brasil
  • Ano: 2014
  • Editora: Fantástica (Rocco Brasil)

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