O Ensino Médio, a exclusão, a baixa auto-estima e porquê você se preocupa demais

Eu vou contar uma história. É uma história pessoal, cheia de pequenas reflexões, que se passou ao longo de cinco anos e, mais recentemente, no brilho de um olhar em um minuto. É uma história demasiadamente longa para algo que você talvez espere ler no meu blog; mas é provavelmente uma das coisas mais importantes que já senti que devia compartilhar na minha vida. E não é de hoje; mas hoje foi provavelmente o dia mais oportuno para finalmente escrever sobre ela. Se você ler, entenderá a razão. Portanto, quero pedir especialmente que leiam este texto.

É uma história sobre Ensino Médio e Faculdade.

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Hoje, no shopping, enquanto cruzava a praça de alimentação, ouvi uma voz masculina chamar meu nome. Procurei o dono da voz, apenas para me surpreender ao dar de cara com um rapaz a quem, por motivos de não quero ninguém falando dele por aí, referir-me-ei neste texto por "Don Ramón". Ele estava sentado a uma mesa com uma senhora que julguei ser sua mãe, e, sorrindo, me acenava. Fui apertar sua mão. Ele perguntou-me se eu estava morando aqui no Juazeiro, já que nunca mais me vira em Araripina; respondi que sim. Perguntei quanto a ele, ao que me respondeu que estava na cidade apenas a passeio. Perguntou-me se já concluí a faculdade, ao que respondi-lhe não. Perguntei-lhe, então, eu, se ele já concluíra seu curso, ao que ele respondeu: "Me formo este ano."

Don Ramón é um rapaz com quem estudei na primeira vez em que fiz o Ensino Médio. Na época, ele era o tipo de aluno que os professores do Médio em geral detestam. Desinteressado, nunca fazia os trabalhos, tirava notas baixas, nunca respondia às perguntas que lhe eram feitas; em trabalhos em grupo, era daqueles que só punha o nome; costumava conversar durante a aula, o que irritava muitos professores, que acabavam criando marcação com ele, e, portanto, muitas vezes, ele acabava sendo acusado de coisas que não fazia.


Injustiçado e mal-querido por muitos professores, Don Ramón era o típico aluno "do fundão" que acabava inclusive sofrendo com maus tratos dos próprios colegas de turma: idiota, sem futuro, quer nada com a vida, era o que diziam dele pelas costas. Ninguém diria na sua frente que Don Ramón era incompetente ou incapaz, é claro. Mas era o que eles pensavam.

Muitas vezes, era o que eu pensava.

Com seu jeito bobalhão, até os colegas com quem andava costumavam menosprezá-lo. E assim ele passou aqueles três anos... à margem.

Se você me tivesse perguntado, então, o que eu achava que Don Ramón faria da vida após a conclusão do Ensino Médio, a minha resposta provavelmente seria algo do tipo: "Se ele concluir o Ensino Médio, em primeiro lugar, provavelmente acabará empregado em alguma vida de NPC, tipo caixa de supermercado. Isso se tiver sorte e não virar peão." Acontece que Don Ramón também não era das famílias mais prósperas da cidade, então (acredito que) seus pais não eram do tipo que lhe arrumariam um ótimo emprego com algum amigo pra ganhar rios de dinheiro sem fazer qualquer coisa substancial; nem tampouco poderiam financiar para ele alguma faculdade chique fora da cidade, como é muito comum entre os pequenos barões araripinenses.

E, mesmo que pudessem, estariam jogando dinheiro fora; afinal, o que Don Ramón faria numa faculdade cara, esse garoto sem futuro, desinteressado com a vida, não é mesmo?

Pois bem, eis que concluímos o Ensino Médio e cá estou eu na minha vida, no ano de 2010, 17 anos, e nenhuma ideia do que fazer em seguida. Muito obsequioso e preocupado com meu futuro, meu pai me oferece algumas opções: "Por que você não tenta fazer o curso de Segurança no Trabalho do SENAI? Talvez você goste. Emparelhe isso com a faculdade de Agronomia, caso não goste, para ao menos ter uma segunda opção." Meu pai é Técnico em Segurança, ótimo no que faz, sem dúvida um dos melhores da região; e é apaixonado por engenharia. Segundo ele, Engenharia Agronômica é a "profissão do futuro", ou qualquer coisa assim. Dá pra ver por que ele me fez essas sugestões, né? As melhores intenções, obviamente. Eu sabia, porém, que não me daria bem com essa faculdade; mas tudo bem, porque eu não tenho ideia melhor, então é isso que meu pai faz: me matricula na faculdade local de Agronomia.

A faculdade é particular, então eis que estamos pagando aí uns quinhentos reais de mensalidade (não me lembro bem, mas julgo que fosse por aí). Isso era um custo com o qual a minha família não podia arcar. Mas pais são pais, né? E é isso que eles fazem: se matam para arcar com os custos dos filhos.

Então eu entrei e comecei a cursar aquela faculdade que eu já achava que não gostaria, e desde o começo minhas expectativas se provaram certas. No primeiro mês de aula, eu sabia que estávamos jogando dinheiro fora.

Mas então, eis que quem eu encontro lá, na minha turma, entre os mais de sessenta calouros da Engenharia? Isso mesmo: Don Ramón. O segundo curso mais caro da cidade, e certamente um dos com maiores índices de desistência, e lá estava meu colega bobão do Ensino Médio. Seríamos colegas mais uma vez.

Mesmo eu não gostando da faculdade, eu me esforcei. Meus pais estavam investindo dinheiro naquilo e meu pai, em especial, acreditava que eu poderia retirar algo muito bom daquilo no futuro; portanto, o mínimo que eu podia fazer era me esforçar. Durante todo o primeiro período, eu me esforcei, e insisti. Sentava perto de Don Ramón quase sempre, já que era meu único conhecido na turma (e também porque a maior parte dos nossos colegas eram consideravelmente mais velhos). Fazíamos trabalhos e provas em grupo juntos sempre, e ele quase sempre me pedia para auxiliá-lo nos trabalhos e pesquisas, como de costume. Certa vez ele inclusive me pagou para que eu fizesse um trabalho inteiro dele, porque, por alguma razão, ele não teria tempo naquela semana.

Enfim, parecia o mesmo Don Ramón do Ensino Médio; a princípio, porém, com uma única diferença visível: ele nunca faltava. Eu faltava muito, e minha justificativa era porque estava fazendo a faculdade em paralelo com o Ensino Médio (pela segunda vez), e isso exigia muito de mim. A verdade é que, com o passar das semanas, eu me sentia cada vez mais esmagado, derrotado por aquele curso. Era algo que eu não gostava, não me identificava, e sumariamente não entendia. Por vezes, voltava para casa no final da noite com a cabeça encostada na janela do ônibus quase vazio, nas últimas poltronas, onde ninguém podia (ou não se preocupava em) me ver... chorando. Aquilo não era para mim, eu sabia. Doía. Era quase... desesperador. Mesmo agora, ao me lembrar dos meus sentimentos naquelas solitárias viagens noturnas, sinto meus olhos marejarem.

Mas eu me esforçava.

Don Ramón, por outro lado, estava sempre sorridente. Como sempre fora, inclusive. (Bobão?)

Chegaram as primeiras avaliações. Eu fiz quase tudo com relativa segurança. Não obstante, minhas notas foram sofríveis seis e setes, nas melhores hipóteses. A única prova que eu tirei 9,0 foi uma de Cálculo I feita em grupo (eu fiz com Don Ramón e outros dois caras).

Os resultados de Don Ramón, porém, me deram um sério choque de realidade. 

Todas as notas dele eram, quando não altas, ao menos average. Ele tinha boas notas. Sempre. No geral. Genuinamente surpreso com isso, eu comecei a observar o que antes eu apenas tinha uma vaga noção:

Don Ramón nunca faltava às aulas. Os pais dele pagavam tão caro quanto os meus, mas ele sempre estava lá, fazendo valer. Por quê? Porque...

Don Ramón estava sempre sorrindo. Ele gostava das aulas.

Don Ramón respondia a todas as perguntas que lhe eram direcionadas.

Don Ramón ia a todas as aulas práticas (eu não ia a nenhuma).

Don Ramón quebrava a cabeça para resolver trabalhos e atividades, visivelmente lutando contra a mente "limitada" que fora levado a crer ter no Ensino Médio.

Don Ramón opinava e discutia sobre agronomia.

Quando alguma questão política da faculdade era trazida à tona, Don Ramón sempre tinha algo a dizer.

Don Ramón estava verdadeiramente engajado no curso. Era algo que ele gostava de fazer. Que ele talvez não entendesse por completo, mas procurava entender. E se esforçava; se esforçava muito mais do que no Ensino Médio. Porque a Engenharia Agronômica era objetiva para ele. Porque ele sabia o que podia e o que queria fazer com ela. Porque ele podia, então, fazia. E ele insistiu, e continuou.

E eu abandonei na metade do segundo período.

Don Ramón foi à minha casa algumas vezes depois de eu ter saído, para pedir que eu digitasse trabalhos; o que eu fazia por ele com todo gosto. Quando víamo-nos na rua, ele sempre me perguntava se eu não pretendia voltar à faculdade.

Eu não pretendia.

Dois anos depois eu ingressei no curso de Letras, no qual atualmente estou (super atrasado) no IV Período. Acabo de me mudar para uma cidade nova e estou matriculado numa faculdade pública onde estou tentando ingressar direto no IV Período, se possível, pra retomar de onde tranquei lá em Araripina. Eu descobri que gosto de Línguas, gosto da minha língua, o Português; gosto de Inglês; gosto de Italiano, Francês, Alemão, Russo e Japonês. Gosto de Etimologia, Filologia e de estudar e entender todas as questões sócio-histórico-culturais que acompanham os idiomas, as gramáticas e a Literatura dos povos e suas respectivas línguas. Descobri que gosto de escrever e adoro ler, estudar e pesquisar. E que gosto de lecionar. Minha vida não anda das mais fáceis, but then again, qual é a que anda? No caminho que escolhi, na profissão em que me descobri, acabo tendo que enfrentar poucas e boas... mas é a minha vida, e em algum canto, há luz, como disse Shia. Eu sei o que quero, agora, e vou continuar insistindo, me esforçando e acreditando, sorrindo até o fim.

Então, por fim, cá estou eu, no Juazeiro do Norte, em 2015, 22 anos, cruzando a praça de alimentação do shopping para encontrar com alguns parceiros para tratar das minhas questões (profissionais? Artísticas?), quando uma voz na multidão me chama e eu dou de cara com Don Ramón. Seu corpo está bem maior, mais forte do que eu me lembrava. Sua barba está espetada, e ele não usa mais aparelho. Don Ramón me pergunta se já concluí a faculdade, ao que eu respondo não. Pergunto se ele já concluiu a dele, ao que ele responde: "Me formo este ano".

Eu estendo a mão para apertar a de Don Ramón mais uma vez. Ele aperta com força. Eu lhe dou meus parabéns. Eu sinto os pelos do meu corpo se arrepiarem, e eu só queria que ele soubesse que o meu orgulho é genuíno, de coração. E eu realmente o admiro, e realmente quero parabenizá-lo por ter chegado até aqui.

Porque ele realmente merece.

Don Ramón saiu do Ensino Médio, onde era tido como bobalhão, incapaz e abaixo da média, para descobrir sua vocação -- sua paixão -- na faculdade, onde teve a VERDADEIRA oportunidade de se dedicar a algo que gostava. De estudar algo que valia a pena. Sem se preocupar com as pressões, julgamentos e expectativas comuns dos adolescentes do Médio. E se dedicou, e estudou, e se esforçou. E deixou para trás o garoto que os colegas de turma outrora julgavam "o mais inteligente".

Mais inteligente my eggs

Nenhum talento natural é maior que o gênio do trabalho duro.

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