[Resenha:] Doutor Sono

                    “Estávamos no ponto sem retorno.                                                                                 De nada adiantavam as meias-medidas.”

— O Grande Livro dos Alcoólatras Anônimos

Seguindo diretamente o clássico contemporâneo O Iluminado, de 1977, é em 2013 que Stephen King nos presenteia com Doutor Sono. Um livro emocionante e, desta vez, mais do que nunca sobre a superação daquilo que corrói nossa humanidade através da coragem, da perseverança e do amor.

Quase quarenta anos após os eventos trágicos no Overlook, Daniel Torrance se encontra num momento obscuro em sua vida: sozinho, após a morte da mãe, Wendy, e tendo perdido contato com o amigo Halloran há anos, viaja de cidade em cidade, sem destino, pulando entre empreguinhos medíocres e entregando-se à bebedeira para fugir dos fantasmas do passado - tanto literal quanto figurativamente falando. O inocente garotinho que encontramos pela primeira vez perdido, aos cinco anos, em meio a uma crise familiar nos anos 70, agora é um adulto complexado e não muito mais bem resolvido... com o mesmo vício que amaldiçoou por destruir seu pai.

E é aqui que encontramos o bom e velho Dan, após uma mancada especialmente aterrorizante que lhe faz ter os mais terríveis pesadelos pelos meses seguintes, com direito às melhores digressões explicativas ao estilo King. Novamente fugindo da culpa, ele agora vai parar numa pequena cidade chamada Frazier, em New Hampshire, onde conhece Billy, um senhor de idade que ele logo identifica como tendo uma "faísca" de Iluminação, que o ajuda a encontrar emprego em Teenytown, uma atração turística local com os maiores modelos de trem funcionais do país. O novo chefe de Dan, Casey Kingsley, um alcoólatra recuperado, logo percebe seu problema de bebedeira e resolve iniciá-lo nas reuniões dos Alcoólatras Anônimos.


Minha coleçãozinha atual de King - em andamento.
Organizado de forma semelhante a Under The Dome, título do mesmo autor publicado em 2011, a cada parte do capítulo, Doutor Sono alterna entre cenários, mas não necessariamente entre os mesmos pontos de vista. Assim, logo no começo, conhecemos Abra Stone ainda durante o nascimento. Desde o berço, o bebê já demonstra uma Iluminação estupenda, aparentemente pressentindo o atentado de 11 de setembro de 2001 com algumas horas de antecedência. Sua avó, Concetta, atenta para essa característica logo cedo, o que os pais da menina tentam ignorar, mas não conseguem deixar de ficar intrigados.

Quando Abra tem apenas dois anos de idade, ela se comunica telepaticamente com Dan, sem que ele saiba de quem se tratava durante os dez anos seguintes.

Paralelamente, o leitor é apresentado aos vilões da obra: o Verdadeiro Nó, um grupo de imortais que se alimenta de vapor, uma substância oriunda do sofrimento e morte de pessoas iluminadas. Como crianças e jovens são mais iluminadas e tendem a perder essa poder ao longo da vida, o grupo age sequestrando e assassinando crianças há séculos. Seu disfarce de viajantes de trailers da terceira idade pelas estradas dos Estados Unidos, porém, lhes confere perfeita discreção, de forma que eles nunca enfrentaram quaisquer problemas com autoridades em toda a existência; desde quando Rose, a Cartola, atual líder do grupo, era uma andarilha britânica no Velho Mundo.

A Primeira Parte do livro, apesar de instigante igualmente à totalidade da obra, é meramente introdutória. A linha principal tem início apenas na Segunda Parte, agora em 2013, quando Abra tem 12 anos. A garota entra em contato mental com Rose pela segunda vez, a fim de investigar um assassinato que uma vez ela testemunhou ser cometido pelo Verdadeiro Nó, e isso põe os vilões na trilha da garota, uma iluminada cujas façanhas sobrenaturais incluem massiva telecinésia e tocar música do nada, tamanha é a Luz que ela tem. Nesse ínterim, a menina consegue novamente entrar em contato com Dan Torrance, agora empregado num asilo onde, junto ao gato paranormal Azraeel, cuida dos velhinhos moribundos. Juntos, eles devem traçam um plano para combater o Nó, descobrindo segredos esquecidos do passado, no processo.

Doutor Sono é um livro cheio de sentimento e emoção. Os diálogos entre Dan e Abra são especialmente deliciosos, te fazendo se identificar e gostar cada vez mais das personagens. A propósito, aqui, novamente, King demonstra sua maestria em lidar com a humanidade das personagens em seus livros, sendo capaz de fazer o leitor sentir certa empatia até mesmo pelos membros do grupo de vampiros pervertidos sequestradores e infanticidas que são os seus vilões. Os pais de Abra são personagens totalmente críveis, e até membros secundários do elenco, como Billy, Kingsley e Dalton, o pediatra de Abra, têm profundidade e pano de fundo suficiente para que suas falas bonitinhas vão muito além das lições de moral manjadas que, de outra forma, poderiam parecer.

Novamente, é uma característica míster deste livro, a forma como Stephen King lida com o vício de Dan. Eu próprio não sou alcoólatra, mas julgo que, caso fosse, provavelmente estaria contemplando a possibilidade de abandonar o álcool ao final do livro. O hábito da bebida pode nem sempre ser tão destrutivo quanto foi para Jack Torrance e quase em igual proporção para o seu filho, Daniel; mas a quantidade de casos que estamos acostumados a ouvir, em que a bebida causa ou catalisa acidentes, crimes diversos e violência doméstica é tão elevada (talvez você próprio conheça alguma vítima do álcool... talvez até você próprio seja uma)... que é difícil não se identificar com a luta de Dan pela sobriedade, e comemorar cada vitória e lamentar cada derrota. O livro é tão honesto e profundo nesse aspecto, que até eu, que nunca vivenciei tal situação, senti-me fortemente comovido... fico pensando no efeito que o romance terá naqueles que vivenciaram.
O marcador com o qual acompanhei esta leitura foi um presente lindo da minha aluna, Déborah Sávila,
e de sua irmã, Roberta Dávila! <3
E por falar em finais emocionantes, se tem uma coisa que Doutor Sono guarda para leitores fieis de King são lágrimas no final. Cenas verdadeiramente de aquecer o coração. Sério, na boa: eu só concluí a leitura no mesmo dia após o "último" capítulo porque o epílogo tinha somente umas quinze páginas, porque depois de como aquele desfecho me fez sentir, eu só queria largar o livro e ficar saboreando aquele sentimento...

Por fim, Doutor Sono é um livro divertido, instigante, emocionante e competentemente escrito (não que ninguém esteja duvidando deste Steve a esta altura do campeonato); a única coisa que ele não é, é um livro de terror. Desta vez, embora o próprio Rei tenha declarado que a sequência de O Iluminado se trataria de um "retorno às raízes" do terror, temo que eu deva discordarpara afirmar que se trata "apenas" de um drama sobrenatural. Talvez King e eu tenhamos ideias diferentes de "terror" (eu me identifico muito mais com as obras de Junji Ito, só pra citar um); mas este detalhe não diminui em nada a qualidade da obra, apenas que, se você está procurando horror, este não é o livro para o seu momento. Mas com certeza concordo com a Times: provavelmente o melhor romance sobrenatural do século.


A capa brasileira é análoga à capa original estadunidense (muito bonita, devo dizer),
mas acho que prefiro a britância, com o Azzie esbanjando catdomination.
 A tradução brasileira de Roberto Grey deixa a desejar em alguns trocadilhos e expressões que ficam claramente forçadas ao longo do texto, diminuindo a fluidez, mas nada que comprometa a leitura. No geral, é uma boa adaptação, até por conseguir adaptar os trocadilhos de doutor e velhinho de forma satisfatória para quem não tem intimidade com a língua inglesa e/ou com a história por trás do apelido de infância de Danny Torrance no livro de 77.

Com altas surpresas, suspense, reviravoltas e momentos tocantes, com direito a revisitar várias personagens marcantes do título clássico, Doutor Sono é um livro maravilhoso cuja leitura eu indico fortemente. É possível compreender a história sem ter lido O Iluminado, mas com certeza o feel é outro para quem já leu. Trata-se leitura bem mais leve que várias outras do Mestre, como Under The Dome (já resenhado neste blog), Duma Key e até o próprio O Iluminado, eu diria; mas que não perde em qualidade para nenhum deles. Aliás, é provavelmente o meu favorito dele até o momento (sim, gostei ainda mais desta sequência do que gostava do original).

O sentimento que fica, no final, é de preenchimento e gratidão, além de uma esperançazinha de que o King seja um pouco mais mercenário desta vez e considere escrever algo sobre a Abra mais tarde... caso não tenha nos contado tudo o que tem para saber sobre a Iluminação, claro.

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Livro: Doutor Sono (Doctor Sleep)
Autor: Stephen King
Gênero: Drama, Suspense, Sobrenatural
Número de Páginas: 475

País: Estados Unidos da América
Ano: 2013
Editora: Suma de Letras


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Assista ao meu vídeo comentando O Iluminado e Doutor Sono, minhas impressões sobre a continuidade e por que eu acho que esta sequência de King é absolutamente genial:



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